Carta aberta aos homens à minha volta
Feminismo. Do dicionário "movimento articulado na Europa, no século XIX, com o intuito de conquistar a equiparação dos direitos sociais e políticos de ambos os sexos"
No último domingo (18/5/25), durante a Copa do Mundo de Escalada em Curitiba, evento internacional e a primeira edição desse evento na América do Sul, teve uma roda de conversa entre mulheres escaladoras de 3 projetos diferentes, mas com uma motivação bem parecida: mostrar pras mulheres e meninas que a escalada é delas também!
Nesse dia faz quase 3 meses que a vó morreu, com 89 anos, depois de eu passar os 6 meses anteriores a isso convivendo mais com ela e podendo, pela primeira vez como adulta, trocar sobre assuntos mais delicados.
Durante esse período eu pude escutar histórias que antes ela não falava. Talvez porque eu era jovem demais, talvez porque ela tinha algum constrangimento.... Lembro de um dia que falou: "nossa, você está descobrindo cada coisa da tua vó, né!?" E por eu não me espantar nem julgá-la pelo que me contava, acho que conseguimos construir um espaço bonito de diálogo, que me permitiu entender mais sobre essa mulher que não era a mais fácil nem perfeita desse mundo, que cometeu erros e sabe que errou, mas que entregou MUITO como vó e mãe.
Nessas trocas, ela me contou que quando era jovem conseguiu um emprego. Era em uma empresa onde tinham mulheres que trabalhavam fazendo digitação (na época, escrevendo em máquina de escrever).
No primeiro dia de trabalho, onde ela iria servir café, ela viu todas aquelas mulheres digitando, sabendo escrever e ler, quando ela se viu querendo fazer aquilo também. "Eu não queria servir cafézinho, eu queria ser como aquelas mulheres que sabiam escrever, mas eu não sabia"
No mesmo dia, chegando em casa, meu vô falou pra ela que se ela voltasse ao trabalho no dia seguinte, quando chegasse em casa as malas estariam na porta, porque ele não queria puta em casa.
Minha vó não voltou no dia seguinte ao trabalho, mas nem por isso ela parou por aí.
Foi ela que quebrou o ciclo de subordinação das mulheres aos homens na nossa família.
Ela não sabia escrever direito e fez tudo o que pôde para que as duas filhas não tivessem que sentir a vergonha que ela sentia por isso.
Formou uma filha em medicina e outra em letras. Depois, os 4 netos se formaram e 2 deles com pós-graduação. Sem dinheiro, sem incentivo, usando apenas o que ela tinha: uma inteligência emocional que a permitiu, de alguma forma, usar da sua beleza e carisma para conseguir educação para as duas filhas, inclusive em escalas particulares, ainda que não tivesse dinheiro.
Ela conseguiu manipular alguns homens para conquistar o que desejava: filhas que soubessem ler e escrever. (e não, ela não se prostituiu, caso você tenha pensado nisso, mas sim conseguiu usar suas únicas ferramentas, que eram a fala e um certo charme, pra por as filhas na escola, já que não tinha dinheiro).
Um mulher que quebrou o ciclo da minha família.
3 meses depois da sua morte, um grupo de mulheres potentes que quebraram o ciclo na escalada.
Se isso não for uma conexão linda demais na vida, não sei o que é.
Num país onde, em 2024, 1457 mulheres foram mortas SIMPLESMENTE POR SEREM MULHERES, que teve 827.990 pedidos de medidas protetivas em todo país pela Lei Maria da Penha e que a cada seis minutos uma mulher foi estuprada (dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública), eu espero que você entenda a importância da conversa de ontem, durante um evento internacional.
E se você acha essa estatística assustadora, venho informar que a realidade é bem pior do que esses números mostram, porque tem muita mulher que não denuncia. Eu sou uma delas, que por volta dos vinte anos (não lembro a data exata e penso que a mente apaga o que não se quer lembrar) sofri um abuso sexual e não denunciei, porque foi em alguma noite bêbada demais por ai e com vergonha de assumir isso.... como se estar bêbada fosse motivo suficiente para sofrer um estupro, de um cara boa pinta, escolarizado, inteligente e que, não duvido, possa algum dia ter trocado umas risadas e piadas infames sobre mulher numa rodinha com você.
Todo mundo conhece uma mulher que sofreu um abuso, mas quase ninguém conhece o abusador. Mas deixa eu te contar: ele normalmente vai estar entre nós!
E o que eu mais queria, com minha fala aqui, é poder compartilhar principalmente com você, homem, o quanto a gente precisa de ajuda.
Não só pela gente, mas por você também.
Ao mesmo tempo que a gente sofre violência física, vocês estão sofrendo muita violência emocional.
E pessoas feridas, ferem.
Pode chorar, pode brochar, pode dizer não pro sexo quando não quiser, pode ser sensível, pode gostar de arte, pode precisar de ajuda e dizer que não dá conta de algo. Pode inclusive gostar de homens e, ainda, sim, continuar sendo homem.
Ontem, durante as falas da mulherada, vários nomes foram citados, de mulheres que eu tenho pertinho e fiquei pensando: caralho, que privilégio!!!
E, claro, vocês homens também foram citados. Na fala de mulheres que viveram a escalada com caras que acolheram, incentivaram e deram suporte. Homens que conseguiram acessar alguma sensibilidade que lhes é tanto podada ao longo da vida, a ponto de se permitir ter uma mulher do lado que não seja com a intenção de a comer ou diminuir.
Eu sempre, desde pequenininha, quando salvava minhocas que caíam pra fora do jardim depois de um dia de chuva, sabia que poderia mudar o mundo. Naquela época eu fazia isso sozinha, assim como minha avó fez lá na década de 50. Hoje vejo que a gente faz isso juntas: uma rede de mulheres incríveis e potentes.
Homem, não se assuste com isso e nem ache que a gente tá remando contra, sendo exagerada ou com muitos mimimis. A gente só tá cansada de ver outras de nós morrer ou sofrer tantos abusos, de gente podando a nossa força, só por ser mulher e precisamos de você nessa rede.
Feminismo não é contra o homem, pelo contrário. É uma luta por e para vocês também.
No último domingo (18/5/25), durante a Copa do Mundo de Escalada em Curitiba, evento internacional e a primeira edição desse evento na América do Sul, teve uma roda de conversa entre mulheres escaladoras de 3 projetos diferentes, mas com uma motivação bem parecida: mostrar pras mulheres e meninas que a escalada é delas também!
Nesse dia faz quase 3 meses que a vó morreu, com 89 anos, depois de eu passar os 6 meses anteriores a isso convivendo mais com ela e podendo, pela primeira vez como adulta, trocar sobre assuntos mais delicados.
Durante esse período eu pude escutar histórias que antes ela não falava. Talvez porque eu era jovem demais, talvez porque ela tinha algum constrangimento.... Lembro de um dia que falou: "nossa, você está descobrindo cada coisa da tua vó, né!?" E por eu não me espantar nem julgá-la pelo que me contava, acho que conseguimos construir um espaço bonito de diálogo, que me permitiu entender mais sobre essa mulher que não era a mais fácil nem perfeita desse mundo, que cometeu erros e sabe que errou, mas que entregou MUITO como vó e mãe.
Nessas trocas, ela me contou que quando era jovem conseguiu um emprego. Era em uma empresa onde tinham mulheres que trabalhavam fazendo digitação (na época, escrevendo em máquina de escrever).
No primeiro dia de trabalho, onde ela iria servir café, ela viu todas aquelas mulheres digitando, sabendo escrever e ler, quando ela se viu querendo fazer aquilo também. "Eu não queria servir cafézinho, eu queria ser como aquelas mulheres que sabiam escrever, mas eu não sabia"
No mesmo dia, chegando em casa, meu vô falou pra ela que se ela voltasse ao trabalho no dia seguinte, quando chegasse em casa as malas estariam na porta, porque ele não queria puta em casa.
Minha vó não voltou no dia seguinte ao trabalho, mas nem por isso ela parou por aí.
Foi ela que quebrou o ciclo de subordinação das mulheres aos homens na nossa família.
Ela não sabia escrever direito e fez tudo o que pôde para que as duas filhas não tivessem que sentir a vergonha que ela sentia por isso.
Formou uma filha em medicina e outra em letras. Depois, os 4 netos se formaram e 2 deles com pós-graduação. Sem dinheiro, sem incentivo, usando apenas o que ela tinha: uma inteligência emocional que a permitiu, de alguma forma, usar da sua beleza e carisma para conseguir educação para as duas filhas, inclusive em escalas particulares, ainda que não tivesse dinheiro.
Ela conseguiu manipular alguns homens para conquistar o que desejava: filhas que soubessem ler e escrever. (e não, ela não se prostituiu, caso você tenha pensado nisso, mas sim conseguiu usar suas únicas ferramentas, que eram a fala e um certo charme, pra por as filhas na escola, já que não tinha dinheiro).
Um mulher que quebrou o ciclo da minha família.
3 meses depois da sua morte, um grupo de mulheres potentes que quebraram o ciclo na escalada.
Se isso não for uma conexão linda demais na vida, não sei o que é.
Num país onde, em 2024, 1457 mulheres foram mortas SIMPLESMENTE POR SEREM MULHERES, que teve 827.990 pedidos de medidas protetivas em todo país pela Lei Maria da Penha e que a cada seis minutos uma mulher foi estuprada (dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública), eu espero que você entenda a importância da conversa de ontem, durante um evento internacional.
E se você acha essa estatística assustadora, venho informar que a realidade é bem pior do que esses números mostram, porque tem muita mulher que não denuncia. Eu sou uma delas, que por volta dos vinte anos (não lembro a data exata e penso que a mente apaga o que não se quer lembrar) sofri um abuso sexual e não denunciei, porque foi em alguma noite bêbada demais por ai e com vergonha de assumir isso.... como se estar bêbada fosse motivo suficiente para sofrer um estupro, de um cara boa pinta, escolarizado, inteligente e que, não duvido, possa algum dia ter trocado umas risadas e piadas infames sobre mulher numa rodinha com você.
Todo mundo conhece uma mulher que sofreu um abuso, mas quase ninguém conhece o abusador. Mas deixa eu te contar: ele normalmente vai estar entre nós!
E o que eu mais queria, com minha fala aqui, é poder compartilhar principalmente com você, homem, o quanto a gente precisa de ajuda.
Não só pela gente, mas por você também.
Ao mesmo tempo que a gente sofre violência física, vocês estão sofrendo muita violência emocional.
E pessoas feridas, ferem.
Pode chorar, pode brochar, pode dizer não pro sexo quando não quiser, pode ser sensível, pode gostar de arte, pode precisar de ajuda e dizer que não dá conta de algo. Pode inclusive gostar de homens e, ainda, sim, continuar sendo homem.
Ontem, durante as falas da mulherada, vários nomes foram citados, de mulheres que eu tenho pertinho e fiquei pensando: caralho, que privilégio!!!
E, claro, vocês homens também foram citados. Na fala de mulheres que viveram a escalada com caras que acolheram, incentivaram e deram suporte. Homens que conseguiram acessar alguma sensibilidade que lhes é tanto podada ao longo da vida, a ponto de se permitir ter uma mulher do lado que não seja com a intenção de a comer ou diminuir.
Eu sempre, desde pequenininha, quando salvava minhocas que caíam pra fora do jardim depois de um dia de chuva, sabia que poderia mudar o mundo. Naquela época eu fazia isso sozinha, assim como minha avó fez lá na década de 50. Hoje vejo que a gente faz isso juntas: uma rede de mulheres incríveis e potentes.
Homem, não se assuste com isso e nem ache que a gente tá remando contra, sendo exagerada ou com muitos mimimis. A gente só tá cansada de ver outras de nós morrer ou sofrer tantos abusos, de gente podando a nossa força, só por ser mulher e precisamos de você nessa rede.
Feminismo não é contra o homem, pelo contrário. É uma luta por e para vocês também.
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