A inteligência do corpo humano
24 de fevereiro de 2025
Segundas, quartas e sextas são os dias que a fono passa pela manhã nos quartos do hospital para poder fazer as avaliações dos pacientes. Já era quase meio dia e a fono ainda não tinha passado por aqui. Eu mandei uma mensagem para ela por celular, pedindo para conversarmos pessoalmente, porque notei que a vó estava tendo alguns machucados na boca nos últimos dias e também para entender como poderiam ser os próximos dias.
Foi de quinta para sexta que ela começou a perder seus movimentos gradualmente... Primeiro as pernas, depois o tronco, os braços e, de forma mais lenta, também perdendo os movimentos das mãos e dedos. Foi, então, a partir de sexta fim do dia que a boca pareceu começar a machucar um pouco por conta de movimentos involuntários. Em conversa com as enfermeiras durante o final de semana, pensamos e tentamos tirar a prótese dentária da vó, por achar que isso a estava machucando. Ela não deixou...
De domingo pra segunda, ao invés das feridas piorarem, melhoraram... Talvez porque cuidamos mais com hidratação dos lábios e limpeza, talvez porque a vó já não estava mais se alimentando (optamos, como consenso entre família, por não colocar sonda depois que a vó perdeu a deglutição de alimentos e líquidos, na sexta, mantendo apenas os cuidados necessários a partir do acesso venoso*)
*Nota importante sobre esse assunto: Dona Candinha, a vó, passou a vida toda dizendo que veio para esse mundo para cuidar e não para ser cuidada. Depois que ela perdeu os movimentos das pernas, ficando oficialmente acamada, de quarta (quando ela entrou para internação) para sexta, fizemos uma bateria de exames que indicaram um quadro complicado, envolvendo sangramento interno, além dos problemas cardíacos previamente existentes (uma fibrilação arterial) que precisava de anticoagulante para controle. Bom, sangramento interno + anticogulante é algo que não combina, então, obviamente que as medicações foram removidas. Até porque nessa altura do campeonato a vó já não conseguia mais engolir nem água. Quando esse quadro complexo foi verificado e, na sequência, confirmado que ela não teria como recuperar seus movimentos (ficaria acamada e sem movimentos se tentássemos, de alguma forma, estender seu tempo aqui, o que ela categoricamente nos orientou a vida inteira ser algo que não queria), procedemos com os cuidados paliativos.*
Eu tinha o contato de celular da fono (Emilia) porque na sexta-feira já tínhamos conversado um pouco, quando fiz a pergunta que acredito ser uma das maiores preocupações de alguém que acompanha o processo de morte de um familiar: "Se uma pessoa vai perdendo suas capacidades de movimento, até chegar em uma condição limite que não consegue mais engolir nada, significa que essa pessoa vai morrer afogada?" E não sei você, mas eu não gostaria de morrer assim e sei que vó também não. Por isso estava ali, fazendo essa pergunta e sendo a ação no mundo que a vó já não tinha.
Emilia, então, me explicou essa parte inteligente demais do nosso corpo: a medida que uma pessoa perde a capacidade de deglutir, também diminui a produção de saliva. Ou seja, talvez as feridas melhoraram de sexta para segunda por tudo que falei acima de cuidados ou simplesmente porque o corpo é tão inteligente que entende que, se não consegue mais engolir, não precisa mais produzir saliva e não força mais a boca.
Voltando para a segunda feira, 24, ainda que os machucados da boca tivessem melhorado, conversei com Emília para que ela nos ajudasse a tirar a prótese dentária da vó, já que as enfermeiras tinha me dito que "tem uma pessoa que com certeza vai conseguir fazer isso, porque tem muita experiência: a fono."
Emilia então me perguntou: "Você acha que sua vó gostaria de ficar sem a prótese dela?"
E eu respondi que não, porque na minha vida inteira eu nunca vi minha vó sem seu sorriso. Ela sempre foi uma mulher muito vaidosa e, claro, um tanto chateada por ter vivido em uma fase do mundo em que a solução para uma cárie era arrancar o dente, ao invés do simples tratamento com uma restauração, como temos hoje. Em todo tratamento médico que fez ou exames, se alguém sugeria que ela deveria remover a prótese por segurança, ela dava um jeitinho de convencer a equipe de que aquilo não era tão necessário e, assim, ficava feliz com seu sorrisão no lugar.
Emilia continuou: "Bom, sua avó já perdeu todos os movimentos e a única coisa que ela consegue fazer agora é fechar a boca. Talvez seja a única coisa que ela tem de autonomia nesse fim da vida dela. Se forçarmos para tirar a prótese, talvez estejamos tirando dela a única decisão que ela pode ter por si."
E assim decidimos manter a prótese, o sorriso, enquanto a vó ainda estivesse nesse plano.
Nessa conversa de segunda com Emilia também falei novamente sobre meu medo de que, quando a hora da morte chegasse, que fosse um momento aterrorizante, de agonia, afogamento, falta de ar, com um corpo sofrendo (a minha fantasia imaginando uma cena de terror, caótica). Em paralelo, falamos também sobre o que ela já tinha me explicado na sexta: além da redução da saliva, o processo respiratório da vó também foi mudando ao longo desses dias... Um ciclo diferente: ao invés da respiração ficar mais ofegante, porque a capacidade respiratória estava reduzindo, os ciclos de respiração ficaram mais lentos. O corpo dela entendeu que estava tendo essa redução de capacidades e entrou em um ciclo mais longo de respiração, com uma inspiração looonga, uma boa pausa antes da expiração e, então, uma expiração também beeeem looonga.
Até que esse ciclo ficou tão extenso, que se encerrou com a parada da respiração.
Foi o primeiro dia desses 6 dias de internação que liguei o computador para assistir uma série e me distrair um pouco. Nesses minutos, ficava de olho na vó de poucos em poucos minutos. Entre esses intervalos, a respiração parou e eu nem vi. De forma calma, serena, silenciosa, mostrando o quanto o corpo do ser humano é tão inteligente até mesmo nesse momento da morte, que é um momento que nossa sociedade evita de falar, que tem medo, que dizem ser um momento difícil, dramático, triste... Foi bonito, em paz, ainda que dolorido para quem fique.
Foi uma morte após ela poder ter experimentado durante esses dias o amor mais genuíno possível, de cuidado, que é aquele onde a pessoa cuidada não tem como dar absolutamente nada em troca, além do que se foi em vida, e ainda assim, quem cuida faz tudo por ela.
A morte é um dia que vale a pena viver 💓

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